Ela


Mais baixa do que ele, isso ela era. Mas como geralmente todas o eram, esse não era o ponto principal. Ela era bonita. Não com um jeito de miss, algo diferente. Mais charme do que beleza. "Unhas vermelhas", ele reparou. Um brinco pequeno em forma de pérola, parte dos cabelos negros amarrados num coque no topo de trás da cabeça. Usava uma pulseira discreta e não possuía nenhum anel nos dedos. Tudo isso ele viu com o canto dos olhos, sem olhar diretamente para ela, que estava sentada a seu lado. No copo, whisky provavelmente, enquanto ele bebia cerveja.
A grande algazarra que ocorria no pub parecia não lhe afetar. Os gritos e palavras obscenas pronunciadas pelos torcedores, certamente bêbados àquela altura, em nada perturbavam sua calma. Ela olhava para a frente, para o nada. Havia o balcão de bebidas adiante, mas ela parecia estar longe dali. Foi com um suspiro que ela 'voltou' e olhou para o lado dos torcedores, levando o copo em direção à boca e bebericando calmamente sua bebida. Nesse instante ele observou-a melhor: ela vestia uma blusinha de alças, branca, e uma calça jeans escura. Ao entrar, havia visto ela deixar pendurado um casaco de peles. O inverno iniciara há pouco menos de duas semanas e já nevava em Londres.
Ela não parecia esperar alguém. Fazia mais de quinze minutos que estava ali e não consultara o relógio nenhuma vez, se é que possuía algum, bem como celular, tão em moda que os jovens não vivem sem. Então um dos torcedores, um rapaz boa-pinta, se aproximou e sentou-se ao lado dela, puxando conversa educadamente. Ela sorriu, antes mesmo de virar a cabeça e fazer um sinal de negação, indicando que a conversa estava encerrada antes mesmo de começar de fato. O rapaz levantou e se afastou, voltando para o meio da festa.
Resolveu ir ao banheiro, e foi o que fez. Ao voltar ela não estava mais lá, somente um novo copo de cerveja à sua frente. O garçom informou que fora a garota que deixara pago, como um 'presente'. Alguns segundos de hesitação, observando o copo em sua mão e pensando nela foi o que salvou sua vida. Uma briga havia começado e um torcedor caiu por cima dele, derrubando o copo com a cerveja e o veneno.
A assassina que observava a porta do pub completamente oculta dentro do carro com vidros escuros ficou surpresa e muito desapontada ao ver o alvo sair vivo de lá. Seu prazo era de três dias e precisaria elaborar outro plano, além de agir rapidamente.
Já Roger, foi caminhando para casa sem desconfiar de nada disso.

Um homem vinha caminhando pela calçada.
Roger estava quase em casa, a neve continuava caindo e a neblina tomava conta da cidade. Por conta disso, não percebeu a presença do homem até que este estivesse a um metro de distância, trombando levemente o seu ombro com o dele.
Quando virou-se para pedir desculpas, o homem estava parado de frente para si, e falou:
"Tenha cuidado, meu jovem. Para os insetos a dioneia parece atraente." E dizendo isso, continuou caminhando embora sem esperar nenhuma resposta.
Roger ficou paralisado. Aquela mensagem seria absurda para a maioria das pessoas, e até para ele, que tinha por hobby fotografar plantas exóticas, não fazia muito sentido. Ele sabe que a dioneia é uma planta carnívora, afinal já fotografara algumas há anos atrás, e obviamente ela parece atraente para os insetos, com suas cores atraentes e glândulas que se aproveitam da predileção dos insetos pelas secessões doces, mas o que ele aquele homem quisera dizer com aquelas palavras permanecia um mistério.
Continuou caminhando mais uma quadra e estava em casa. Tirou o sobretudo, pendurando-o no cabideiro atrás da porta e foi até a sala de estar, onde ligou seu laptop em cima da escrivaninha. Ele comprara a casa do antigo dono completamente mobiliada, com móveis do século XIX, e era exatamente naquela época que a casa fazia ele se sentir. Ignorando seus poucos pertences pessoais - roupas, calçados, câmeras fotográficas e o laptop, - ele parecia viver no passado, num ambiente perfeito para uma história de Sherlock Holmes.
Nesse instante, soou a campainha. Sem imaginar quem poderia ser, àquela hora avançada, olhou pelo olho mágico da porta e viu que era a mesma mulher que estava no bar.

Ao ver a mulher, ficou se perguntando como ela poderia ter encontrado seu endereço. "Ela me seguiu até aqui?" Tirou a corrente de segurança da porta, destrancou-a e no instante em que abria a porta, lembrou das palavras daquele estranho na rua e fez a associação beleza->perigo. "Deixe de bobagens... Pare de ser paranóico e imaginar coisas", pensou consigo mesmo.
- Oi, Roger.
- Oi.
- Espero que não me deixe aqui fora com esse frio.
- Não, claro que não... Entre, fique à vontade... Deixe que eu cuido disso - e se ofereceu para pegar o casaco dela.
- Não precisa, vou ficar com ele.
- Certo. Parece que você sabe muito a meu respeito, e eu nem sei seu nome. Como você sabe meu nome e meu endereço? E qual seu nome e quem é você?
- Calma... Antes de mais nada quero que você saiba que tudo isso é estritamente profissional e não tenho nada pessoal contra você. - E falando isso, levou a mão ao coldre escondido sob o casaco...
- Espera um pouco, estou te reconhecendo... Eu já te vi antes! Você é a moça que se ofereceu como estagiária na empresa na semana passada, não foi?
- É, era eu. Mas nem tente lembrar do meu nome, aquele que usei era falso. - Sua mão alcançou a arma e ela ia sacar quando ele perguntou:
- Bom, quer beber alguma coisa?
Ela olhou sobre o ombro dele e viu um bar com diversas garrafas.
- Aceito um Ginger Ale, se você tiver.
- Tenho, claro. - Roger encaminhou-se para o bar e começou a preparar um uísque com gelo para si, enquanto pegava uma garrafa de Ginger Ale. - Qual seu nome?
- Pode me chamar de Clair.
A assassina sacou a arma e apontou para Roger, enquanto este ainda estava de costas. Pelo espelho do bar ele a viu segurando a arma apontada em sua direção e lembrou da associação beleza->perigo... Medo, pavor, terror. Desespero. Foi o que salvou sua vida pela segunda vez aquela noite. Sem pensar no que fazia, virou-se e pulou na direção dela, ainda segurando seu copo e a garrafa de Ginger Ale. Algo que a assassina - que não se chamava Clair - não esperava. Embora fosse treinada, aquilo realmente pegou-a de surpresa. O tiro que ela disparou acertou a garrafa que Roger segurava, a mesma garrafa que Roger brandia para acertá-la, que agora quebrada, cortou sua garganta, matando-a.
E Roger continuou vivo. A Scotland Yard foi chamada, Roger provou que agiu em legítima defesa, e descobriram que Florence - esse era seu nome real - era procurada há anos pela Interpol por assassinatos em toda Europa. Porquê alguém iria querer matá-lo foi algo que nem mesmo os brilhantes investigadores britânicos conseguiram descobrir. E ainda sem entender bulhufas do que havia acontecido recentemente, na segunda-feira Roger foi ao trabalho, como em uma segunda-feira normal.
Tudo aconteceu por causa de uma foto. Devido ao seu hobby de fotografar plantas exóticas, uma foto tirada por acaso à beira do mar, numa colina rochosa, levou-o a ser confundido com um espião. Alguém importante e com muito dinheiro, cujo nome não deve ser citado, mantinha transações com um famoso governante, cujo nome também não deve ser citado. Ambos estavam em um iate quando viram um homem tirando fotos do topo de um penhasco. Uma nação inteira seria abalada caso os dois fossem visto juntos. Poderia causar até uma guerra. A fim de evitar maiores riscos, contrataram alguém para matá-lo. Entretanto, depois da morte da assassina e do não-aparecimento de notícias na mídia relacionada à algum escândalo político, decidiram ignorar.

Fim.