Conto


Olhando para fora da janela ele via o céu azul, de um tom mais claro que a sua camiseta, e as árvores ao longe, circundando a área da mansão. Mesmo que quisesse, não poderia sair de seu quarto. Segundo suas contas, seria amanhã o dia do passeio no pátio. Duas vezes por semana, geralmente depois do dia em que o almoço era composto de vegetais, alguém vestido de branco - Mellis se recusava a chamá-los de "enfermeiros" - vinha buscá-lo e o acompanhava numa caminhada pelo pátio da mansão. O gramado sempre estava bem aparado, bem como os arbustos, mantidos numa altura de 60cm. Numa de suas caminhadas anteriores, perguntara à moça de branco se poderia caminhar perto dos muros. Ela se limitou a olhar para ele, mantendo sempre aquele sorriso falso no rosto e sua mão na dela.
Ele, então, tomou a iniciativa e foi caminhando para o extremo do pátio. Naquele lado, a grama estava coberta de folhas secas, caídas das árvores do lado de fora, e o muro parecia bem mais alto do que visto da mansão. Devia ter quase cinco metros de altura, de um branco desbotado pelo tempo.
Bateram à porta do quarto, indicando que alguém ia entrar.

- Boa tarde, Mellis! Está um belo dia hoje, não? - disse o doutor. Doutor porque se diferenciava dos enfermeiros: além da camisa branca, usava um jaleco branco, e os doutores conversavam com ele. Pareciam querer dele respostas que ele não tinha, como se ele soubesse de algo muito importante.
A vontade que Mellis tinha era correr, passar pelo doutor e pelo enfermeiro que o acompanhava e sair. Simplesmente sair, para qualquer lugar longe dali. Ele tinha algumas lembranças de uma casa, onde ele possuía uma bicicleta, e a imagem de (sua mãe?) uma mulher com longos cabelos negros e um frequente sorriso no rosto. (Qual era mesmo a cor da bicicleta? Um dia ele soubera, e, assim como todas lembranças de antes da mansão, estava esquecendo de tudo pouco a pouco.)
Mas ele sabia que não adiantaria tentar correr. Haviam mais enfermeiros no final do corredor e nas escadas. Nos primeiros dias na mansão ele conseguiu escapar do doutor e do enfermeiro em seu quarto e chegar ao corredor. Correu em direção às escadas porém antes que pudesse alcançá-las mãos fortes o seguraram por trás, levantando-o do chão, ao mesmo tempo que via outro enfermeiro chegando ao segundo andar, pronto para impedir qualquer passagem por ali.
- Boa tarde - respondeu.
- Como está se sentindo hoje?
- Bem.
- Muito bom! Vamos fazer alguns testes? - dizendo isso, abriu a maleta que trazia consigo, retirando de lá uma folha de papel em branco, um lápis e fazendo um sinal com a cabeça, o enfermeiro se adiantou e ligou dois eletrodos em suas têmporas.
'Como se eu tivesse alguma escolha', pensou Mellis. 'Tomara que acabe logo'.

- Hoje as questões serão simples. Garanto que você poderá respondê-las facilmente e em pouco tempo - disse o doutor. - Aqui, pegue esta folha e escreva a resposta para a questão que irei ler.
- Certo.
O enfermeiro alcançou o gravador para o doutor, e permaneceu segurando uma caixa, do tamanho de uma caixa de sapatos, de onde saíam os fios ligados aos eletrodos em suas têmporas. O doutor disse:
- Para registro: Paciente Mellis Hampton, 14 anos. Dia 86, Teste 12, questões de opinião frente a ações diárias. Documento com as respostas será anexado posteriormente. Início: 15:43hs. Primeira questão: Visualize a cena onde você precisa lavar uma certa quantidade de louça suja; você está parado na frente de um balcão, com uma pia ao centro, no lado esquerdo do balcão está a louça suja, no lado direito do balcão há um espaço vazio para colocar as louças lavadas. Você tem à sua disposição uma esponja, sabão e detergente. Descreva no papel em branco quais os procedimentos detalhados que você executaria.
'Hã? Querem saber como eu iria lavar a louça? Que treco mais simples...' - e começou a escrever.

'Pego a esponja, abro a torneira, molho as mãos e a esponja, fecho a torneira. Coloco algumas louças sujas dentro da pia, passo detergente na esponja e começo a ensaboar as louças, colocando-as em seguida no lado direito do balcão. Vou repetindo o processo até que as louças estejam limpas.'

- Mas assim você deixaria as louças ensaboadas, e não prontas. Continue, por favor - disse o doutor.
- Tudo bem.

'Quando todas as louças estivessem ensaboadas, eu abriria a torneira, lavaria a esponja, jogaria água no lado esquerdo da pia, onde estavam antes as louças sujas, limparia aquele lado, e depois de enxaguar as louças, colocaria elas no lado limpo.'

- Desse jeito está bom?
- Sim, perfeitamente. Você não sentiu nada diferente ao imaginar a cena?
- Não, me sinto normal.
- Então, terminamos por hoje - dizendo isso, o enfermeiro se adiantou e removeu os eletrodos, enquanto o doutor pegava gentilmente o papel e o lápis da escrivaninha.
Assim que os dois se retiraram, Mellis levantou as mãos de seu colo, e viu que elas estavam molhadas e com sabão, como se ele realmente houvesse lavado as louças de sua imaginação.


Depois daquele teste, Mellis ficou intrigado. Nunca havia presenciado algo semelhante, nem imaginava que tinha poderes. Naquela noite, levou algum tempo rolando na cama até conseguir dormir.
No outro dia, durante o passeio ao pátio, ele não quis caminhar pelo mesmo caminho de sempre. Como a enfermeira se limitava a sorrir e manter sua mão na dela, ele tomou a iniciativa e começou a conduzir a caminhada para os fundos da mansão. Contornaram a mansão pelo lado direito, e ele viu algo que não tinha visto ainda - já que sempre recebia suas refeições no quarto, e os testes e provas também eram aplicados por ali mesmo. - Viu outro "paciente", outro interno, assim como ele! Embora tivesse suspeitas de que não era o único naquela mansão enorme, nunca havia visto nenhuma outra pessoa que não vestisse aqueles jalecos brancos ou o uniforme branco dos enfermeiros. E a surpresa não foi só da parte dele. O outro garoto também parou, olhando para ele atônito. Parecia muito mais surpreso do que ele, como se estivesse por ali há pouco tempo. Então, num ímpeto, o garoto se desvencilhou do enfermeiro que o segurava e saiu correndo na direção de Mellis.
"SOCORRO! ME AJUDE!" - foi o que ouviu diretamente na sua mente.
Aquela invasão inesperada de algo que deveria ser completamente particular e inviolável assustou Mellis.
"
Você consegue ler meus pensamentos?" - ele pensou em resposta.
"
SIM CONSIGO MAS POR FAVOR ME AJUDE A SAIR DAQUI!" - como definir que os gritos pareciam ensurdecedores, se ele não ouvia nada, apenas aquelas palavras brotando aos berros em sua cabeça, vindas claramente do garoto que corria em sua direção?
"
Acalme-se! Estou pensando nisso e vou bolar um plano para nos tirar daqui." - pensou ele.
"
Obrigado Mellis! Meu nome é Thomas, mas pode me chamar de Tommy."
O enfermeiro alcançou Tommy e segurou bruscamente seu braço, fazendo o garoto cair no chão. A enfermeira que acompanhava Mellis disse:

- Está na hora de voltarmos - e foi levando-o de volta pelo caminho por onde vieram.
Ao se virar para voltar para a frente da mansão, ainda surpreso com tudo que estava acontecendo, Mellis viu num relance que a parte de trás da mansão era idêntica à parte da frente.

Mellis ficou pensando nos dois ocorridos, mas principalmente no outro garoto, no desespero que havia em sua voz, uma angustiante ânsia por libertação. Ele havia dito que tinha um plano, mas não tinha nada além de algumas ideias, e decidiu fazer algo a respeito.
A primeira coisa a fazer era entender seus poderes. Não sabia exatamente como havia feito para que suas mãos ficassem molhadas e ensaboadas no outro dia. E como provavelmente deveria estar sendo observado o tempo todo, inclusive àquela hora, talvez uma câmera escondida em seu quarto, precisaria tomar cuidado com o que fazer. Levou algum tempo pensando e eliminando diversas possibilidades até encontrar uma satisfatória: tentaria abrir a janela. A tranca estava com defeito há vários dias, e o reparo ainda não tinha sido feito. Caso ela se abrisse - como ocorrera numa noite de temporal - não teria nada que o ligasse ao fato.
Deitou-se na cama, cobriu-se com as cobertas e concentrou-se. Imaginou a janela se abrindo. Nada. Olhando fixamente para ela, pensando na solidez da madeira e na tranca defeituosa, tentou mais uma vez e nada. Tentou lembrar o que fizera de diferente no outro dia. Fechou os olhos e pensou no vento que seria necessário para abrir a janela. Imaginou esse vento vindo com força contra a janela, fazendo-a se abrir e bater contra as grades e nesse momento uma forte lufada de ar entrou no quarto, levantando parte de suas cobertas e causando um arrepio de frio. Abriu os olhos e olhou para as janelas, mas elas continuavam fechadas. Cansado, virou-se para o lado e dormiu.
Na manhã seguinte, um enfermeiro trouxe o café-da-manhã e foi abrir a janela. Notou a tranca aberta, mas viu que a mesma estava com problema. Pensou consigo que o conserto devia estar agendado e não comentou nada com ninguém, para sorte de Mellis, que continuava sem entender seus poderes.

"Isto está acabando comigo", pensou Mellis, pela milésima vez. "Não aguento mais ficar o dia todo trancado aqui sem fazer nada." Ficar parado em seu quarto não era bom. As poucas lembranças que tinha do tempo em que não estava na mansão não ajudavam nem um pouco a reconfortá-lo.
Sua memória era como um livro com algumas páginas rasgadas e muitas rabiscadas, ilegíveis. Não lembrava de muitos fatos, apenas fragmentos como estar correndo com outros garotos, brincando juntos. Mellis, Joe, Abraham e Fourty, e muitas lembranças envolviam eles quatro. Eles andando de bicicleta pela periferia da cidade em uma cena, folheando uma edição da Penthouse que Abe pegara escondido de seu pai em outra. Tudo era diversão, tudo era permitido e tudo estava bem quando estavam juntos.
Sentiu a cabeça doer ao tentar lembrar o que acontecera e parou de tentar lembrar. Estava pronto para fazer outra tentativa de entender seus poderes quando bateram à porta. O doutor entrou, e logo atrás dele um enfermeiro, carregando a caixa dos eletrodos, que certamente seriam ligados à sua têmpora para mais um teste.
- Olá, Mellis! Como vai?
- Estou bem.
- Ótimo. Tenho mais um teste para você. Farei algumas perguntas e vamos ver as suas reações - e inclinou a cabeça, sinalizando ao enfermeiro para que ligasse os eletrodos. - Tudo certo?
- Tudo. - "Como se fosse certo eu viver trancado num quarto o tempo todo, num lugar estranho, onde eu não conheço nada nem ninguéma e fazem testes comigo como se eu fosse uma cobaia, mas tudo bem..."
- Ok, vamos lá! - e ligou o gravador. - Para registro: Paciente Mellis Hampton, 14 anos. Dia 99, Teste 14, testes de reflexo memorial, reações frente a eventos passados. Documento com as respostas será anexado posteriormente. Início: 14:52hs. Primeira questão: Qual é a lembrança mais remota que você tem da sua infância?
"Teste 14? Não lembro de ter feito o teste número 13... E como se eu já não tivesse tentado lembrar de coisas assim antes", pensou Mellis. E resolveu ser sincero.
- Eu lembro de uma mulher de cabelos compridos estendendo os braços pra mim e sorrindo. Mas eu não enxergo isso com os meus olhos, enxergo como se eu estivesse olhando isso do lado, e assisto a mim abraçando essa mulher. Acho que é minha mãe. Eu estava chorando. Tinha caído de bicicleta e ela cuidou de mim.
- Ótimo, segunda questão: Qual é a lembrança mais triste que você tem?
- Não sei - respondeu após pensar um pouco. - Não consigo lembrar de nada triste, até ser trazido pra cá - comentou amargamente.
- Nada mesmo? Tente se esforçar um pouco mais.
Ele sabia que devia ter passado por algum acontecimento que o deixasse triste, mas mesmo fazendo um esforço para recordar, não conseguia lembrar de nenhum fato concreto que pudesse contar ao doutor, apenas alguns flashes, gritos, alguma queda, mas não sabia de quem eram os gritos ou quem é que havia caído.
- Não, não consigo lembrar de nada.
- Tudo bem, terceira questão: Você encontrou outro garoto no pátio esses dias e ele pediu ajuda? Pretende fazer alguma coisa a respeito?
Aquela pergunta pegou Mellis completamente desprevenido. Surpreso, respondeu:
- Sim, Thomas pediu a minha ajuda, pediu socorro e disse que queria sair daqui, mas não há nada que eu possa fazer...
Esperava tranquilizar o doutor daquela maneira, mas se surtiu algum efeito, ele não deixou transparecer nada em sua expressão.
- Ok, terminamos por hoje. - e saíram, deixando Mellis a sós novamente, entregue a seus pensamentos.
"Eu deveria ter esperado algo assim. E não menti para eles, não tenho nada a fazer para ajudar, pelo menos até entender como é que molhei minhas mãos aquele dia."

TO BE CONTINUE...

Livre


Era um grande campo, daqueles que dá vontade de sair correndo. De todos os lados não se via nada além do verde verdejante daqueles verdes campos. E o céu azul acima de sua cabeça. Começou a caminhar e subiu até o topo da colina mais próxima, sentindo se muito bem por estar num lugar tão belo.
Chegou no topo, olhou ao redor e tudo continuava igual. Colinas e mais colinas, campos e mais campos, até a linha do horizonte. Tudo estava bem, não sentia fome nem sono naquele lugar. Era tranquilo, era bom, o ar era fresco, o céu era azul, enfim, estava perfeito.

Mas o que ela queria mesmo eram as montanhas.


(A história deveria terminar nesse ponto. Só pra explicar, caso a continuação não agrade: até esse ponto foi o que fiquei sabendo a princípio e pensei que era tudo. O resto eu fiquei sabendo mais tarde, e embora eu pudesse deixar sem escrever, decidi escrever tudo)

Então ela decidiu caminhar. Caminhar o quanto fosse preciso para chegar às montanhas.
E começou a caminhar. Não havia como saber se demorou ou não, pois não havia dia, não havia noite. Havia aquela mesma perfeição dos campos. Naquele lugar ela dava passos e mais passos em direção ao horizonte, sem parar. Depois de muitos passos naquela direção incerta, começou a notar uma certa diferença nos campos. As colinas eram cada vez mais escassas e a os campos tinham um tom levemente mais claro. E ela continuou caminhando, sempre feliz, contente, agradável.

Muitos passos além ela chegou.
Nas montanhas não. Na praia.

Incomum


Robert: "Porque estou fazendo isso? Queria mesmo era estar em casa, dormindo, e não aqui, nesse maldito emprego de guarda de trânsito, balançando essas malditas plaquinhas... Se aqueles bastardos responsáveis pelo semáforo tivessem efetuado a manutenção direito, eu estaria no escritório, conferindo relatórios com ar-condicionado e água gelada."

Andrew: "Querida, eu estou indo pra casa! Eu sei que estou atrasado para o almoço... Não é culpa minha se os semáforos da cidade pararam de funcionar e o guarda só deixa os outros carros passarem... Sim, eu sei... Tudo bem, vou pegar na volta... Esse mês não vai dar... A gente continua conversando logo mais, o guarda liberou essa via, vou desligar, beijo... Também te amo."

Nora: "Aqui está seu pedido, senhor! - Ele disse sim, ele disse sim! O que irei vestir? O vestido preto, ou um jeans e uma camiseta básica? - [Nora! Mais duas entregas: este na mesa 1, e este na mesa 9!] Estou indo! - Bill é tão lindo, mal posso esperar pela sessão de cinema na quinta! - Aqui está seu pedido, senhor! [Eu não pedi isso!] Opa, é este aqui, desculpe-me..."

Mitch: "Correto! Estou na Broadway com a John St., em breve chegarei ao escritório, peça que o sr. McGonagall aguarde, ele é um cliente importante para nós! Qualquer caso que ele tenha necessidade de um advogado, diga-lhe que forneceremos os melhores! Até mais."


Além disso tudo, havia mais uma pessoa na cena.
Nenhum dos envolvidos - Robert, Andrew, Nora ou Mitch - conhecia essa pessoa, que caiu do céu para o meio da história. Na verdade, ele não caiu, e não foi do céu. Ele se jogou, do terraço do prédio.

Os paramédicos foram chamados, assim como a polícia, mas ninguém pôde fazer nada e nada foi descoberto. Sem documentos, roupas sem etiqueta, a face fora completamente desfigurada com a queda do 8º andar. Havia sangue por todo lado, formando poças pelo chão, fragmentos de ossos e órgãos internos espalhados pelo asfalto.

O que há em comum entre os envolvidos, além de terem presenciado um suicídio ao vivo e à cores (com predominância do vermelho)? Depois do fato, todos procuraram auxílio psicológico para superar o trauma.


Conheça a esquina da Broadway com a John St.

Senseless

Texto escrito por: Dimas Henrique Rockenbach e Luiza Bagesteiro.


"Hoje foi especial. Encontrei algo que me libertou. Escapei de uma situação conflituosa e constrangedora. Alfred foi quem me ajudou, me dizendo que Cristeen estava saindo às escondidas com Robert. Fiquei abismado quando soube que ela não voltaria mais, me deixando com o coração partido. Porém, ela ao menos levou consigo a carta que escrevi a ela, me deixando a BMW. Minha mãe disse: 'Já vai tarde, aquela vaca! Ela nunca te amou!' Estou feliz pois agora estou livre para contar a verdade a todos: 'Annie está grávida, e eu sei quem foi o responsável, pois sábado passado ficamos bêbados e ela foi embora com o filho do prefeito Harris, aquele playboyzinho de merda! Chantagem é crime, por isso já sei muito bem o que vou fazer: terei de matá-lo. Mas vou fazer isso rapidamente. Assim que ele sair de sua mansão, eu saio do meu Chevette e convido-o para uma bebida, por minha conta. Vou envenená-lo com o cianureto que Cristeen deixou para trás antes de fugir. Alfred concordou que isso era necessário, e disse que vai me ajudar a envenenar esse maldito e esconder o corpo. Se ao menos eu tivesse tomado conta de minha mãe, ela não precisaria fazer um aborto agora. Mas esse filho que ela está esperando não é culpa minha. Não sabia que tinha uma mãe tão liberal e safada assim, a ponto de beijar outra mulher depois de 8 ou 9 doses de absinto. E pelo jeito, isso foi o mínimo que ela fez naquela noite, já que agora espera um filho de seu primo. Bem, de qualquer modo, quando tudo isso acabar vou pegar minha BMW e meu violão, e seguir a Rota Interestadual 66 até Miami. Essa época do ano é propícia para a pesca de salmões, e quem sabe eu leve comigo meu material de pesca. Talvez eu até pegue um bronzeado. A única coisa que sei no momento é que preciso parar com as dorgas, manolo!
RIARIARIARIARIARIARIARIARIARIARIARIARIARIARIARIA!"

Monstro


Frio, muito frio.
Era isso que o garoto Richard sentiu naquele momento. Mesmo deitado em sua cama, com o pijama do Mickey e embaixo das cobertas, sentiu um frio daqueles de gelar os ossos. E com o frio, veio o medo.
Ouviu passos no corredor, e abriram a porta do seu quarto. Com os olhos arregalados e em silêncio ele viu o vulto estender o braço pra dentro do quarto até alcançar o interruptor de luz na parede e ligá-lo.
- Tudo bem, filho? - perguntou Martin.
- PAPAI! - e nisso, pulou da cama para os braços carinhosos de seu pai.
- Hei, acalme-se campeão, está tudo bem. Porquê você está tremendo?
- Eu estava com medo, papai.
- Medo de quê?
"Não vou falar que papai parecia um monstro", pensou Richard.
- Não sei, só estava com medo...
- Bom, pode ficar tranquilo, papai está aqui.
O garoto aninhou-se nos braços do pai, adormecendo logo.
No quarto ao lado, Martin e Susan dormiam profundamente.
Então, o monstro foi embora, levando o pequeno Richard consigo.

Double Double

Por Dimas Henrique Rockenbach & Vanessa Ames Schommer (A Caixa Laranja).


Jack saiu correndo daquele quarto. Seria bom se afastar bastante daquele lado da cidade, antes que alguma camareira encontrasse o corpo do negociador, e a polícia fosse chamada. Desceu para o metrô do outro lado da rua, e, já com um blusão amarelo, entrou no primeiro metrô que parou na estação, depois de jogar o sobretudo azul escuro que estivera usando e a arma na lixeira do banheiro. Pegou o celular do bolso e entrou em contato com seu parceiro, avisando que o trabalho estava feito, podiam continuar com o serviço sem problemas.
Enquanto descia numa parada aleatória sentiu que estava sendo seguido. Tremeu. Era a primeira vez dentre todos os serviços que fez que se sentia assim. Ligou novamente pra John, e quando ouviu o alô do outro lado da linha, sentiu um baque nas costas. Desmaiou. John ficou extremamente irritado com a brincadeira de Jack, afundou as mãos na jaqueta de camurça marrom, e seguiu descendo a rua Baltazar. Passou por alguns carros, ajeitou o cabelo agachando-se em frente ao vidro de um carro, conferiu o estado da calça jeans escura, all star, tudo ok. Entrou no bar e a viu.
John caminhou até a mesa do canto e exclamou: "Mãe! O que você faz por aqui?!" Diana levantou a cabeça lentamente e pediu silêncio com um gesto. Observando com atenção, John viu que havia alguém deitado com a cabeça no colo de Diana, parcialmente encoberto pela mesa e difícil de ser notada pela penumbra do local. Era Jack.
- O que você fez com ele?
- Shhh, fale baixo. Eu não fiz nada, apenas fiquei com saudade e mandei meu guarda-costas ir buscá-lo pra mim. E eu sabia que você iria aparecer, mais cedo ou mais tarde.
"Ela poderá estragar todo o plano se eu não fizer algo", pensou John.
- Estamos no meio de uma importante negociação, mãe! Precisamos ir embora agora, e o Jack vai comigo!
- Sinto muito, Johnny querido, mas você também não vai sair daqui.
Nisso as portas do bar se abrem revelando os dois guarda-costas de Diana, que se postaram em frente à porta impedindo qualquer saída por ali.
John se volta lentamente para Diana com um sorriso malicioso no rosto. Imediatamente tira do bolso um controle remoto e com ele aciona o botão de sua motocicleta, que entra quebrando a porta do bar e derrubando os guarda-costas. Do outro bolso tira uma arma e aponta para Diana e para todos do bar. Fica vagando pelo cômodo com ar doentio, até que enfim a aponta para sua própria cabeça e diz:
- Mãe, agora é sério, deixe eu e o Jack irmos logo, ou você nunca mais me verá.
- Johnny, você não me deixa escolha.
Nesse momento um dos homens de Diana que havia se levantado num pulo acerta John com uma cadeira nas costas. Ela tira uma seringa de uma maleta preta, escolhe um dos frascos, passa o líquido amarelado pra seringa, aplica em John. E coloca os dois em camisas de força, e ordena que os levem para a casa do interior.
No outro lado da cidade, na frente do hotel, alguns homens a mando de Don Levito coletam informações, e constatam que os dois definitivamente estão encrencados.

Uma ponta de brilho se via chegando na porta, uma brisa com perfume de mulher. Era Diana, com um sobretudo bege empunhando seu cigarro, o levava volta e meia aos lábios vermelhos, e depois ajeitava os cabelos longos e negros. Atravessou o salão, no alto de seus sapatos de salto vermelhos que estalavam no chão de mármore, parou em frente a Don Levito e atirou-se em seus braços.
- Oh Mercedes, eu sabia que viria - exclamou Don.
Diana censurou-o:
- Não fale isso em público, as pessoas podem nos ouvir!
- Eu não me importo, já está na hora de assumirmos! Porquê não revelar logo aos meninos que você está comigo? Podemos parar de fazer esse jogo duplo...
- Não! Precisamos nos manter afastados! Se eles desconfiarem de algo, ou mesmo se souberem que estamos juntos, fazendo eles de bobos, eles poderão se revoltar! E você sabe tanto quanto eu da força deles unidos...
- Está bem, venha logo, vamos para a suíte.
Nesse momento, Jack acordava num quarto escuro e frio, porém deitado numa cama macia.
Imediatamente revistou seus bolsos à procura do seu celular, mas ele havia sumido. Encontrou somente seu chaveiro com mil e uma utilidades que carregava sempre consigo, e embora estivesse morrendo de dor de cabeça e com o corpo mole, o chaveiro era tudo que ele precisava para fugir dali. Usou-o para iluminar o quarto com a lanterna embutida, procurando a janela mais próxima. Ela estava no canto direito do quarto, bem no alto. Selecionou a opção chave de fenda e desparafusou as dobradiças; com muita calma retirou as partes dela e pôde sair, pulando até o chão. Caiu na grama fofa, o ar da noite lhe fazia bem.
Lembrou-se de John, procurou no bolso secreto de sua jaqueta e por sorte estava lá: o localizador GPS para encontrar seu irmão. Ativando-o, percebeu que ele estava dentro da casa da qual escapara. Voltou, e da mesma forma que abriu a janela, fez com a porta, esgueirou-se pelos corredores e achou o quarto do John. Acordou o irmão e deram uma busca na casa. Estava completamente vazia. Jack disse:
- Vamos acabar logo com isso?
- Tudo bem - respondeu John.
Nisso, deram-se as mãos, e bradaram em uníssono:
- Super-Irmãos! ATIVAR!
E viu-se um feixe de luz azul brilhar no céu.
Diana acordou sobressaltada, assustando Don Levito, deitado ao seu lado na cama King Size da suíte do hotel. Ainda nua, levantou-se e caminhou até a janela.
- O que houve, Mercedes?
- Nada... Tive a impressão de que havia alguém parado do lado de fora da janela...
- Como poderia? Estamos no 8° andar! Venha para cá, deixe-me acalmá-la...
- Não quero, algo está me deixando inquieta. Será que está tudo bem com Jack e John?
- Claro que sim, mandei meus melhores homens para guardar a casa. Nem uma mosca seria capaz de nos alcançar aqui...
Então a vidraça se quebra e uma águia entra voando velozmente, furando os olhos de Don Levito com suas garras afiadas, enquanto Diana grita histericamente por socorro.

Na mesma velocidade com que a águia apareceu, ela foi embora.
Don Levito levou a mão aos olhos, berrando:
- AAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHH!! Aquele pássaro furou meus olhos!!! Peça ajuda para alguém, ligue para um médico!!
Diana se recompôs e ligou para a telefonista do Hotel, mandando que chamasse um médico e uma ambulância do hospital mais próximo.
Se ainda tivesse seus olhos no lugar, Don Levito choraria de dor. Como isso não era possível, o sangue que saía de seus olhos demonstrava um pouco do que ele estava sentindo.
Diana desligou o telefone e buscou algumas toalhas no banheiro, entregando uma delas a Don, que limpou o rosto e berrou:
- Vamos descer, a ambulância deve estar chegando!
- E como vamos explicar o que aconteceu? - perguntou Diana. - Não podemos dizer que um pássaro quebrou a vidraça, entrou no quarto e furou seus olhos... Você sabe que eles farão perguntas!
- Tem razão... Precisamos pensar em algo, mas vamos indo, temos alguns minutos para pensar no elevador - respondeu Don.
Don foi tateando para sair do quarto e aguardou do lado de fora enquanto Diana fechava a porta. Antes de sair, ela viu em cima do criado mudo um abridor de garrafas de vinho. Derrubou-o no chão em cima do sangue, e tomando o cuidado de trancar a porta ao sair, Diana pensou: "Isso poderá explicar o furo de um olho... Um acidente ao cair no chão, mas os dois... Temos que ver isso."


TO BE CONTINUE...

O homem estranho


História baseada em relatos recolhidos pela polícia de Mount Hill, Maryland, EUA, sobre fenômenos incomuns ocorridos entre 18 e 19 de junho de 1999, relacionados à um indivíduo não-identificado e desaparecido até o momento.

Do depoimento de Elmer Dupont, 48 anos, taxista, 22 de junho de 1999, 13:31hs:

"Ele entrou no táxi e antes que eu perguntasse o endereço, porque tem gente que esquece disso, tem uns que entram e esperam que a gente adivinhe pra onde querem ir, então, ele disse logo 'Hotel Crinchton' e só. Parecia que não era pessoa de falar muito, e na minha opinião, se eu tivesse uma voz daquelas, também não ia gostar de falar muito, parecia que ele sofria a cada letra que falava. O que aconteceu de estranho? Na hora do almoço desci do carro e vi que estava com pneus novos. Eu não quis acreditar, verificara eles naquela manhã antes de sair de casa e percebi que estavam carecas, precisando trocar. Quando fui olhar de perto vi que eram os mesmos pneus que eu havia colocado há 5 meses atrás, mas estavam novos em folha! E se precisar eu posso mostrar a nota fiscal deles pra provar, porque eles são meus, e policiais ou não, eu preciso dirigir pra garantir meu sustento, então sugiro que liberem meu carro, e com meus pneus nele."

Do depoimento do dr. Bean Armstrong, 39 anos, 23 de junho de 1999, 14:43hs:

"O paciente do quarto 68 tinha, no máximo, mais 2 semanas de vida. Havia sido diagnosticado um câncer de pulmão em estado avançado, e não havia nada que pudéssemos fazer, ele estava fraco demais para ser submetido a uma cirurgia. Estava declarado como indigente, não possuía um endereço fixo e dizia dormir na rua, ou em abrigos da prefeitura, quando conseguia vagas. Segundo ele mesmo contou, fumava desde os 17 anos, quando fugira de casa. É de se espantar que tivesse chegado aos 72 anos, e se não fosse morrer pelo câncer de pulmão, qualquer outra coisa poderia matá-lo, tal era seu estado de saúde."

Do depoimento de Ernest McMillen, 44 anos, dono do bar da esquina 23, 22 de junho de 1999, 16:05hs:

"Eram pouco mais de quatro horas da tarde, não havia nenhum outro freguês no bar, então eu pude reparar bem nele. Alto, magro, cabelos escuros, e apesar de aparentar uns 65 anos, no mínimo, se movia como se tivesse 20. Eu gosto de conhecer os meus clientes, por isso puxei um papo, perguntei de onde ele era, o que fazia na cidade. Ele não foi rude, apenas disse que não queria conversar. E que voz estranha! Eu nunca tinha ouvido nada assim, era como aquelas vozes de monstros dos filmes que a gente vê na tv. Pediu um Chivas Regal com gelo, e tomou de um gole só. Se ele não queria conversar, tudo certo, eu não iria enxer o saco do velho, o cliente sempre tem razão. Pediu uma segunda dose, e ficou encarando o copo por uns 5 minutos antes de tomar. Pagou com uma nota de cem, fez um sinal como se não quisesse troco e foi embora sem olhar pra trás. Pensei 'hoje é meu dia de sorte!' e ao me virar pra caixa registradora vi que todas as garrafas do bar estavam cheias. Não poderia ter sido nenhuma brincadeira do Clark - um garoto da redondeza que me ajuda a guardar as bebidas no depósito, - porque ele não viera aquela semana. A princípio achei que fosse água, e fui provar. Era bom demais para ser verdade! Eram os melhores vinhos, as melhores vodkas e os melhores whiskies que eu já havia provado na minha vida, e espero que me devolvam tudo, porque se estiver faltando um pingo das minhas bebidas, nós vamos resolver isso com o Juiz, estamos entendidos?"

Do depoimento de Anne Morgan, 35 anos, recepcionista do Hotel Crinchton, 23 de junho de 1999, 19:56hs:

"Cheguei ao Crinchton às 7 horas, como todo dia, e assumi a recepção junto com a Clarice (Clarice Fletcher, recepcionista do Hotel Crinchton) na troca do turno da noite, às 8 horas. A movimentação estava baixa, normal para um sábado, eu diria que haviam uns 10 ou 20 hóspedes no Hotel naquele momento. Quem atendeu ele foi a Clarice, eu estava ao telefone com a Sra. Martin (Martin Fletcher, aposentada, residente no Hotel), do quarto 145, que perguntava porque o café da manhã que ela pedira ainda não havia chegado. A única coisa que eu reparei foi a voz estranha, como se estivesse com a garganta inflamada ou coisa assim. Não vi quando ele se afastou, e demorei a perceber que a Clarice estava parada, sem fazer nada. Quando chamei por ela, ela não respondeu, olhei direito e vi aqueles olhos brancos! Encostei a mão nela e ela caiu no chão. Ela estava gelada. Aí gritei pra chamarem uma ambulância, ela precisava ser levada pro hospital. E sinto não poder auxiliar mais, espero que a Clarice se recupere logo. E posso ir embora agora? Minhas crianças sem dúvida estão com fome em casa!"

Do depoimento de Michael Bonera, 27 anos, pintor autônomo, 22 de junho de 1999, 14:30hs:

"Foi conversando com a Sarah (Sarah Prout, jornalista) que eu tive a ideia de pintar o parque Hutchinson. Como choveu na quarta e na quinta só pude ir ao parque na sexta. E que fique esclarecido, meu estilo de pintura não é nenhuma arte moderna, aquelas manchas e listras e formas sem sentido - odeio essa gente falsa que se diz 'artista' e pinta tanto quanto um gorila -, e tenho uma técnica especial que desenvolvi. Como tenho memória fotográfica, fico observando o local por 1 ou 2 minutos, e depois passo pro quadro o máximo que eu lembro, fazendo conferências quando não lembro de um ou outro detalhe. Eu fiquei observando o parque, e comecei a pintar. Algum tempo depois, quando fui conferir os carros que estavam estacionados, vi ele sentado no banco mas não dei muita atenção, ele não iria aparecer no quadro mesmo, meu objetivo era o parque. Depois de uns 10 minutos, olhei pro lado onde ele estava, pra ver os bancos, e ele estava sorrindo e olhando pra mim. Até agora eu me arrepio só de lembrar. Eu desviei o olhar e me escondi por um instante atrás do quadro. Quando olhei novamente, ele havia desaparecido, e naquele instante começou a chover. Eu mal tive tempo de cobrir o quadro e recolher minhas tintas e pincéis. Quando cheguei em casa, fui notar que o banco onde ele estava ficava bem no meio da praça. Ele não tinha como ter desaparecido assim de repente. Achei estranho, mas pensei comigo mesmo 'deve ser um cara daqueles programas de pegadinhas da tv, com truques e tudo mais' e tratei de esquecer o assunto."

Do depoimento de John Berthold, 46 anos, morador de rua, 25 de junho de 1999, 11:30hs:

"Eu não sei nada sobre o velho, ele só apertou a minha mão! [Caso colabore conosco, receberá almoço e alojamento no abrigo da prefeitura por um mês.] É sério isso? Eu quero ver escrito no papel e assinado! [Aqui está.] Olha, eu não sei ler, mas vou acreditar em vocês! Eu não sei o nome dele, ele apareceu naquela semana pelas ruas, mas o pessoal falava que por onde ele passava, deixava as coisas melhores, boas, sabe? Ninguém conversava com ele, diziam que ele tinha parte com o dem... er, com coisas do mal, sabe? Eu não sabia se era verdade ou não, e o melhor era ficar longe, eu preferia não descobrir mesmo... Mas quando ele apertou minha mão, e olhou no fundo dos meus olhos, eu percebi que era invenção tudo que falavam dele. É difícil explicar, eu me senti muito bem, como na época em que vivia junto com minha esposa e meus filhos, uma coisa boa assim por dentro, sabe? Paz! Isso, é essa a palavra! Paz, foi o que eu senti. Eu estava dormindo e quando acordei, ele estava do meu lado me olhando. Pensei em me afastar e ele estendeu a mão. Não sei porquê que eu apertei a mão dele, foi meio sem querer, sabe? Quando eu levantei pra guardar os meus pedaços de papelão, me dei conta que minhas roupas estavam novas e aí ele já tinha ido embora. E se tem uma coisa que eu posso dizer, é que ele é uma boa pessoa."

Dos depoimentos de James Taylor, Charles Miler e Harry Calvert, 16 anos, estudantes, 22 de junho de 1999, 17:10hs:

"(Charles) Vocês não vão contar pro nossos pais sobre isso, né?
(James) Se meu pai descobre que eu estava matando aula, ele vai ficar uma fera comigo...
(Charles) Eu falo o que sei sobre aquele homem, se vocês prometerem que nenhum dos nossos pais vão ficar sabendo disso, okey?
[Tudo bem, está combinado.]
(Charles) Quem começa falando?
[Quem quiser, fiquem à vontade.]
(James) Deixa comigo, eu começo. A gente saiu do colégio na hora do recreio, as duas últimas aulas eram de Matemática e é difícil aguentar a Sra. Humboldt com aquela voz de taquara rachada. A gente foi até o Johnny Bar e comprou uma Coca, e sentamos na calçada pra tomar.
(Charles) E aquele pão-duro do Johnny não quis nos dar 3 copos, disse pra tomarmos todos num só...
(James) Quando a gente tava quase acabando de tomar foi que ele chegou. E perguntou pro Charles porquê a gente tava fora da aula.
(Charles) Não foi pra mim, foi pro Harry!
(Harry) A voz dele era diferente. Uma voz rouca, estranha...
[Harry, quais foram as palavras dele?]
(Harry) Ele falou como se me conhecesse. Ele disse: 'Hey, garoto, vocês três deveriam estar aprendendo agora, não?' Eu me senti como se estivesse cometendo um crime...
(Charles) E eu te falei que era besteira. Quem é que nunca matou aula?
(James) A verdade é que eu também me senti culpado, até ele continuar falando...
(Charles) Isso daí ele falou pra mim! Eu juro que ele leu meus pensamentos! Eu tava pensando onde a gente ia usar as merdas que ensinam pra gente no colégio e o cara sorriu pra mim e falou: 'Não se preocupem, o que vocês aprendem lá, não ajuda muito aqui.'
(James) Estranha foi a frase que ele falou na hora de ir embora... Tu lembra, Charles?
(Charles) Eu não... Tava tentando entender como ele sabia o que eu tava pensando...
(Harry) Foi assim: 'Longos dias e belas noites, jovens-sai, eu digo a verdade e você diz obrigado, ah diz sim!'. E ainda: 'Fazia muito tempo que eu não dizia essas palavras pra ninguém, mas vocês merecem.' E depois ele foi embora.
(James) Isso mesmo, 'longos dias e belas noites'... Enquanto ele falava, eu me senti bem, como acordar depois de passar um dia dormindo...
(Charles) Eu não lembrava disso que ele disse, mas me senti bem... Lembrei de quando meu pai me levava pra pescar com ele...
[Vocês viram pra que lado ele foi?]
(James) Não, uma hora ele tava na minha frente, e depois tinha sumido.
(Charles) Eu te disse que ele se escondeu atrás do carro...
(Harry) Eu olhei atrás do carro, ele não tava lá. Ele só... se foi."

Do depoimento de Clarice Fletcher, 39 anos, 30 de junho de 1999, 10:30hs:

"Comecei meu turno junto com a Anne às 8 horas da manhã, e o movimento estava normal, eu estava organizando umas cartas e não vi ele se aproximar do balcão da recepção. Quando me dei conta, ele estava ali. Pedi desculpas, e perguntei no que poderia ajudá-lo. Ele só disse 'Oi, Clarice' e olhou pra mim... E os olhos dele... Vocês vão achar que eu estou louca, mas eu tive a impressão de que ele era muito, muito mais velho do que parecia. Os olhos dele eram profundos, foi como se eu estivesse olhando pro céu à noite, num lugar afastado, e só havia uma estrela lá. Eu não sei por quanto tempo eu fiquei olhando praquela estrela, digo, pros olhos dele. Aquilo fez eu me sentir bem, me sentir tranquila, como se não houvessem mais problemas, nem bandidos, nem ladrões... Quando me dei por conta, estava deitada no chão, e a Anne gritava, chamando um médico, pedindo que ligassem para alguma ambulância. Eu estava me sentindo bem, não via motivo de todo aquele alarde. Ela me ajudou a levantar e me levou até o banheiro pra lavar o rosto... E foi aí que eu vi meus olhos. Estavam brancos! Aí eu desmaiei, e só acordei aqui no hospital. Levantei da cama e fui correndo ao banheiro para ver meus olhos no espelho, e estão normais, castanhos, como sempre foram, mas o dr. Armstrong disse que eu devo ficar mais uns dias sob observação."

Do depoimento de Louise Affleck, enfermeira, 28 anos, 23 de junho de 1999, 15:38hs:

"Fui eu que o liberei, sim. Mais tarde, quando o dr. Armstrong me mostrou os exames eu não quis acreditar que fora detectado um câncer ou qualquer coisa nele. Eu voltava da ala da maternidade, e ele estava em pé na porta do quarto observando o corredor. Quando me aproximei, ele disse: 'Enfermeira, eu me sinto bem, gostaria de ir pra embora.' Ora, estamos no verão, ninguém gosta de ficar em um hospital quando poderia estar em casa, ou passeando no parque. Quando perguntei-lhe porquê havia sido internado, ele só soube dizer: 'Vim pra cá porque tinha doença.' Analisei-o e ele estava com a saúde perfeita, e nisso posso apostar meu diploma. Nenhum sintoma de nada, muito menos câncer. Pedi se ele sabia quem era o médico responsável, ele falou 'Armstrong'. Eu sei bem como o dr. Armstrong vive reclamando do excesso de trabalho e pensei 'vou aliviá-lo dessa carga!'. Preenchi os papéis para a liberação, e pedi que ele assinasse embaixo. Ele saiu pela porta da frente e não o vi mais."


Do [Relatório Final] elaborado pelos investigadores:

"1. O homem referido nos depoimentos é alto, magro, foi visto com a barba bem feita, cabelos negros escuros, curtos, e não carregava nada consigo. Sua identidade não foi identificada.
2. O líquido contido nas garrafas de Ernest McMillen é o mais puro possível, dentre cada categoria. A análise química dos elementos confirmou que o vinho passou por, no mínimo, 150 anos de envelhecimento, e o mesmo pode se dizer do whisky. Foram recolhidas amostras de cada garrafa.
3. Os três alunos tiveram seus pais notificados pela fuga do colégio, e foram liberados após o depoimento.
4. Segundo o dr. Armstrong, a enfermeira Louise Affleck é digna de confiança, e se ela preencheu os papéis de liberação é porque o paciente estava bem.
5. As roupas de John Berthold foram observadas e não há nada que indique um tempo de uso maior do que 12 horas [A ordem de reserva de alojamento por 1 mês no abrigo de Lumbermill, foi encaminhado ao supervisor do abrigo].
6. Os pneus de Elmer Dupont foram conferidos e o número de série confere com as notas fiscais apresentadas, registrando a compra dos pneus no dia 4 de janeiro de 1999. O perito garante que aqueles pneus não rodaram nem três quilômetros para chegar na Delegacia.
7. A jornalista Sarah Prout confirmou por telefone que Michael Bonera não consome drogas e é um amigo de infância, sendo, portanto, seu depoimento, digno de confiança.
8. O histórico médico de Clarice Fletcher não aponta nenhum distúrbio mental ou psicológico e os testes feitos nela e em Anne Morgam indicam normalidade.
9. Está sendo investigada a hipótese de que o paciente (tratado doravante como [P]) liberado pela enfermeira Affleck e o homem causador desses estranhos eventos (tratado doravante como [H]) sejam a mesma pessoa, mas não há nenhuma prova nesse sentido.

Ordem cronológica dos fatos, em horários aproximados:
dia 11, 9:35hs - [P] pede a liberação do hospital.
dia 18, 7:10hs - John Berthold aperta a mão de [H].
           8:30hs - [H] entra no táxi de Elmer Dupont, pedindo para ir ao Hotel Crinchton.
           8:40hs - [H] chega ao Hotel, e encontra Clarice Fletcher.
dia 19, 15:00hs - Michael Bonera vê [H] no parque Hutchinson.
           16:00hs - [H] entra e bebe no bar de Ernest McMillen.
           16:20hs - [H] encontra James Taylor, Charles Miler e Harry Calvert na rua de trás do Colégio Green Star.

Piratas, Ninjas e Samurais


- Okinawa foi avistada! - foi o grito que se ouviu do marujo que estava na gávea do navio, observando o mar.
"Hora de colocar o plano em ação", pensou consigo o chinês Zhilong, conhecido como Capitão Gaspar entre os piratas. "Precisamos entrar em contato com o clã Kobayashi para que tudo seja providenciado o mais rápido possível."
Zhilong, chinês batizado com o nome de Nicolau Gaspar, agora era temido por muitos e reconhecido como um pirata sem escrúpulos e sem medo de nada.
Passou anos navegando em silêncio, cumprindo bem as ordens recebidas e planejando sua vingança. Haviam sido os piratas que mataram seu pai, sua mãe e sua irmã Weng, quando ele ainda tinha 17 anos. Desde então, tinha mudado de cidade, foi para o meio dos piratas portugueses em Macau e decidiu que iria vingar a sua família. Conseguiu entrar para o grupo do mesmo pirata que invadira a sua cidade e destruíra muitas famílias, incluindo a sua. Se tornou amigo dos outros piratas, aprendeu bem o ofício de navegador, e não havia quem soubesse se localizar melhor do que ele em alto mar. Admirado e respeitado por todos, era visto como um homem determinado, que sem saber nada tornara-se o melhor navegador daquela época.
Certa noite, após um grande saque realizado, todos estavam festejando e bebendo rum. Ele manteve-se sóbrio e esperou que todos adormecessem. Aproximou-se furtivamente da cabine do capitão, que estava guardada por dois guardas completamente bêbados. Sabia da devoção dos guardas do capitão, e sem hesitar, matou os dois silenciosamente, com uma facada na garganta. Entrou e encontrou o capitão dormindo em cima do ouro, produto do roubo recente, e cercado por garrafas vazias.
Ele acordou o capitão com cuidado, sem alarde para que não chamasse a atenção de outros piratas.
- O que faz aqui, Nicolau? Não te dei permissão pra entrar na minha cabine!
- Capitão, olhe bem nos meus olhos. Não lhe pareço familiar? Não recordas mais a invasão à vila de Yaoguwan, há 16 anos atrás?
Ele viu o reconhecimento aflorar nos olhos do capitão.
- Agora eu vingo minha família! - e decapitou sua cabeça instantaneamente.
Pegou a pistola, a espada e a cabeça do ex-capitão. Saiu, dirigiu-se à proa do navio e disparou para o alto. Todos acordaram assustados.
- ASSIM EU TRATO MEUS INIMIGOS! Esse homem matou meu pai, minha mãe e minha irmã. Agora, eu sou o novo capitão desse navio! - bradou em altas vozes.
E desde então, conquistara a fama de cruel e destemido, adquirira mais um navio para sua frota e garantia a lealdade de seus marujos distribuindo bem o ouro dos saques.
Muitos piratas estavam agindo naquela época, e vários países estavam tomando atitudes fortes contra piratas, como por exemplo, disfarçar navios de combate em mercantis, para que, assim que abordado por piratas, estes fossem capturados ou mortos.
Gaspar teve a ideia de navegar em sentido contrário. Ao invés de atacar os navios portugueses, espanhóis ou franceses que vinham para as Índias, decidiu ir em direção ao Japão, e planejou um roubo em que contaria com a ajuda de ninjas.



Aproximaram-se de Okinawa durante a noite, para facilitar o contato com o grupo ninja Kobayashi. Assim que a mensagem foi elaborada e entregue ao mensageiro ninja, este despachou o recado em código até Kyoto, para que começassem com o plano.
Zhilong pagaria muito bem em ouro, para que durante uma semana, integrantes do grupo Kobayashi infiltrados em serviços de transporte desviassem carregamentos de valores e roubassem o quanto fosse possível, e levassem para Hamamatsu, na província de Shizuoka. Então, ao final de uma semana eles se aproximariam e carregariam tudo nos dois navios.
Em Okinawa eles atracaram num velho estaleiro abandonado, e passaram a semana fazendo preparativos para o dia do carregamento. A cada dia, alguns marujos se disfarçavam de camponeses, e iam à cidade comprar munição, roupas novas e comida. E no dia seguinte, outros marinheiros repetiam a tarefa, para não despertar suspeitas.
Enfim chegou o dia esperado. Eles rumaram na direção de Shizuoka, onde deveriam chegar ao anoitecer. Naquele momento, o Capitão Gaspar revelou seu verdadeiro plano aos companheiros de pilhagem: iriam carregar os produtos do roubo nos navios, porém, não pagariam nada aos ninjas, ficando com tudo para si e fugindo em seguida. O clima entre os piratas era de tensão. Nunca haviam roubado algo em conjunto, nem tão vultuoso. Dessa maneira, se aproximaram de Hamamatsu.
Avistaram ao longe um ninja fazendo sinais luminosos, marcando o local onde estava a mercadoria. Era um grande galpão, pertencente a um influente político subornado pelos ninjas; ficava no final do porto, e possuía um pequeno escritório num canto. Aportaram e, seguindo as instruções, marujos se preparavam para iniciar o carregamento, enquanto o Capitão Gaspar foi "levar o pagamento" para Megui Kobayashi, o líder do grupo ninja, que o aguardava no escritório.
Entretanto, o que eles não desconfiavam - exceto talvez o próprio Capitão, que sabia de histórias de traição entre ninjas - era que estes também pretendiam enganar os piratas, pegando para si o ouro prometido pelo roubo e tudo que havia sido roubado. Queriam atacar os piratas assim que o pagamento fosse feito, e forçá-los a fugir. Poderiam então, atribuir a culpa do roubo aos piratas, e deixar as autoridades pensarem que o dinheiro estivesse perdido.
Com o Capitão fora de vista, os ninjas iniciaram o ataque: shurikens eram lançados, atingindo os piratas por todos os lados, enquanto ninjas apareciam das sombras do galpão, atacando com suas Ninja-to, katanas adaptadas ao estilo ninja de luta. No escritório, Megui Kobayashi estava sozinho com Zhilong, que ao ouvir gritos vindos do galpão que acabara de deixar, não hesitou duas vezes em puxar a arma e disparar contra Megui, matando-o na hora.
Assim que o efeito surpresa acabou, os ninjas começaram a perder vantagem no combate, pois não eram bons em lutas de grande duração. Sempre foram treinados para matar silenciosamente, na calada da noite, aproveitando as sombras como aliadas. E não era o que acontecia. Haviam derrubado vários piratas, mas o Capitão Gaspar havia retornado, organizando a luta para o lado dos lobos do mar, marujos que haviam permanecido no navio começaram a atirar com seus canhões já carregados e a cada instante surgiam mais piratas armados com pistolas, vindos do segundo navio.
Percebendo que a situação lhes era desfavorável, um mensageiro foi mandado para buscar ajuda, e os ninjas recuaram e deixaram os piratas pensarem que haviam vencido.
Vendo os ninjas fugirem, começaram a comemorar! Brados de alegria eram ouvidos ecoando no galpão e o Capitão tratou de esfriar os ânimos e ordenou que iniciassem o carregamento o mais rápido possível. Quando o primeiro navio estava lotado, foi trocado de lugar com o segundo, e permaneceu pronto para a fuga, enquanto começaram a carregar o segundo barco.
O dia já clareava, e foi nesse momento que os ninjas reapareceram, junto com os samurais Setsui.

Conhecidos por todo Japão como os mais habilidosos no manejo da espada, aqueles que possuíam as mais fortes armaduras, capazes de suportar até mesmo disparos de armas de fogo, os samurais liderados por Mihase Setsui não passavam de um bando de japoneses com roupas estranhas e espadas compridas para os piratas.
E foi isso que quase os levou à ruína.
Alguns piratas tentaram a sorte na batalha corpo-a-corpo, mas no momento em que se punham ao alcance das katanas dos samurais, eram mortos. E os samurais - não mais de 30 - avançavam lentamente em direção ao navio, ao mesmo tempo que o Capitão Gaspar berrava, ordenando a retirada.
Quando viu que as pistolas não faziam efeito naquelas proteções, e sabendo estarem praticamente sem munição para os canhões (que sempre são necessários no mar), Zhilong ordenou que largassem tudo e fugissem, afinal o Sir Peter estava cheio de ouro.
"Levantar âncoras! Içar velas! Soltar as amarras! Virar tudo a bombordo!" O pânico se instaurou entre os piratas. Com os dois navios prontos para a fuga, os últimos piratas em terra, que tentavam conter o avanço dos ninjas e samurais, desistiram e subiram logo a bordo, no que foram seguidos por samurais e ninjas.
Então, os piratas foram traídos pela própria ganância. O Oliver, por estar mais leve - não tiveram tempo de carregá-lo tanto quanto o Sir Peter - estava se afastando, deixando a maioria dos piratas no mesmo barco com os samurais, que não encontravam nenhuma dificuldade em cortar cordas, panos e madeira, provocando uma verdadeira destruição.
Gaspar gritou para que fossem jogadas cordas, e assim, alguns piratas conseguiram trocar de barco na última hora, deixando quase todo ouro pra trás. Vendo os samurais e ninjas com o ouro que ele considerava seu, e tendo abandonado um navio da frota, Capitão Gaspar decidiu que se não pudesse tê-lo, ninguém o teria.
Ordenou que as velas fossem abaixadas e todos se dirigissem para os canhões. Iria afundar seu ex-navio. E foi o que fez, pegando os samurais de surpresa com tiros de canhão. Estes, sem ter como revidar os ataques, nada puderam fazer a não ser pular na água para tentar se salvar - o que provou não ser uma boa estratégia, considerando a dificuldade em se manter à tona com as pesadas armaduras que usavam, e foram salvos pelos ninjas, que dessa forma saldavam a sua dívida para com os samurais.
Muitos ninjas mortos pelos piratas.
Muitos piratas mortos pelos ninjas e samurais.
Alguns samurais mortos por tiros de canhão e outros por afogamento.
Ninjas e samurais mostraram a força do povo japonês.
Nicolau Gaspar e seus marujos mostraram a ferocidade dos piratas, mesmo perdendo muitos homens e um navio.
E o ouro foi pro fundo do mar.

Mais história


As paredes eram beges. Daquele bege cor-de-calcinha. Haviam diversas portas, sem indicação nenhuma, sem saber para onde levavam. Ele decidiu que aquele não era o andar certo, e subiu as escadas para o andar superior. Ali haviam menos portas. E uma se abriu:
- Olá, André! - cumprimentou o estranho.
- Que lugar é esse? André é o meu nome? Quem é você?
- Hahaha, essa foi demais! Acordou bem-humorado, hein? Deixa de brincadeira e vá falar com o chefe, ele está esperando. Ficou puto da cara porque você não veio para a reunião. A comissão de planejamento estabeleceu metas até pra faxineira... Esse mês vai dar o que falar! Nos falamos!
- Espere, você precisa me ajudar! Como eu saio daqui?!
Era tarde, ele havia sumido atrás de uma porta branca como todas as outras.
Sem saber o que fazer, André ("Será esse mesmo meu nome?") fechou os olhos por um momento.


Antes mesmo de abrir os olhos, ele sentiu um enjôo, como se o chão não estivesse firme sob seus pés e percebeu uma brisa fresca que balançava seus cabelos curtos. Abriu os olhos e se viu no convés de um navio, vestindo um terno italiano preto, calças sociais que caíam muito bem nele e sapatos Gucci.
"E agora José?!", pensou. Um garçom vinha passando e perguntou de maneira muito educada e polida se ele desejava algo.
Ele olhou ao redor, e só via água e mais água, nenhum sinal de terra firme.
- Sim, eu quero ir embora daqui!
- Sinto muito, Dr. Hurp, mas não creio que isso seja possível, a próxima parada está programada para daqui a 22 dias, em Bombaim.
- Hurp? Meu nome é André Hurp?
- Desculpe, mas o barman-chefe só informou que todos deviam tratar o Dr. Hurp com muita gentileza, afinal, é o senhor que está bancando essa viagem transoceânica...
- O quê? Está dizendo que fui eu que paguei pra esse barco viajar??
- Se o doutor está se referindo a esse cruzeiro de luxo, sim, foi o que nos foi di...
- Ahh, eu não aguento mais! Que porcaria é essa! Alguém pode me explicar o que está acontecendo??
- Doutor, tenho que pedir que se acalme, poderá assustar outros passageiros a bordo gritando dessa maneira. Eu tenho certeza de que o comandante poderá responder qualquer pergunta...
- Me leve de uma vez até ele!
A caminho da cabine de comandante, os dois foram jogados ao chão com uma pancada.
Algo havia se chocado contra o navio.


Uma multidão gritava, berrava, comemorando algo. Levantou a cabeça para olhar, e todos olhavam em sua direção. Estava numa arquibancada, cercado por mais de 50 mil pessoas, em pé e segurava uma bola de couro branca, um pouco maior que o tamanho do seu punho fechado. Usava um calção jeans, tênis esportivo, um boné azul-escuro e uma camiseta branca com a inscrição "YANKEES". Um garotinho a seu lado, segurando um dedo de espuma, sorria, feliz como só uma criança de cinco anos pode sorrir.
- We are champions, dad!!! (Nós somos campeões, papai!!!) - percebeu que as conversas e gritos ao seu redor eram em inglês, e ele compreendia perfeitamente tudo que era dito.
Aturdido com tudo aquilo, olhou para o campo, a tempo de ver o jogador número 13 correndo da terceira para a última base, concretizando aquilo que (seu filho?) o garoto lhe falara. O telão mostrava a sua imagem ao vivo, olhando atônito para tudo que o rodeava.
A voz do narrador se ouvia pelos alto-falantes espalhados nas arquibancadas:
- A wonderful shoot of Jim Leyrits, that knock-out Atlanta Braves and makes the Yankees the new champion!!! (Uma tacada maravilhosa de Jim Leyrits, que derruba os Atlanta Braves e torna os Yankees o novo campeão!!!)
Um jovem da fileira da frente da arquibancada olhava pra ele com admiração, e disse:
- If it were a little lower, I would have caught the ball! (Se viesse um pouco mais baixo, eu teria pego a bola!)
Seguranças se aproximaram dele e falaram:
- Come on Mr., let's go to interview. (Venha senhor, vamos para a entrevista.)
Ele finalmente falou:
- I wanna go out of here! (Eu quero ir embora daqui!), e percebeu que estava falando em inglês.
- Mr., you just need to give the interview, you got the ball of game. Are the rules, was at your ticket. (Senhor, você só precisa dar a entrevista, você pegou a bola do jogo. São as regras, estava no seu ingresso.)
- I don't care! Soon i'll disappear and reappear elsewhere. What's going on with me?! (Eu não me importo! Logo irei desaparecer e reaparecer em outro lugar. O que está acontecendo comigo?!)
- We understand that is hot, Mr. is delirious. Come on... (Nós entendemos que está quente, o senhor está delirando. Vamos...)
Passou a mão pela parte de trás do calção, e notou que havia uma carteira no bolso. Pegou-a, estava disposto a descobrir quem era daquela vez, qual seu nome completo, endereço... Seriam pistas pra tentar descobrir o que estava havendo consigo.
Abriu a parte dos documentos, e estava vazia. Tinha mais de US$ 300 na carteira, mas nenhum documento. Se virou para (seu filho, Deus queira que fosse seu filho) o garoto, mas não havia mais nenhum garoto ali. Preocupado, perguntou às pessoas ao redor:
- Somebody have seen the boy that was on my side? (Alguém viu o garoto que estava do meu lado?)
Um homem de trás dele disse:
- There is no boy here. Since the beggining of the game, you're alone and the place beside you, empty. (Não há nenhum garoto aí. Desde o início do jogo, o senhor está sozinho e o lugar ao seu lado, vazio.)
Aturdido, confuso, sem saber em quê acreditar, muitas ideias passavam por sua cabeça, perguntou:
- What day is it? (Que dia é hoje?)
- Wednesday, 10/27/1999, day of the final of championship (Quarta-feira, 27 de outubro de 1999, o dia da final do campeonato) - respondeu o guarda. Look, you're weird... (Olhe, o senhor está confuso...)
- All this is weird! All this is crazy!!! (Tudo isso é confuso! Tudo isso é maluco!!!)
E saiu correndo, numa desabalada carreira empurrando outras pessoas e vendedores de hot-dogs (É cachorros-quentes! Merda!) e refrigerantes até o ponto mais baixo, pronto para pular de cabeça os 6 metros que o separavam da arquibancada inferior.
Passou uma perna sobre o baixo muro de proteção, ouvindo gritos atrás de si.
Pulou, no momento exato em que o agarravam.
Não caiu como esperava, apenas bateu a cabeça contra o muro, sem sentir nenhuma dor, e apagou.

Uma voz feminina gritava:
- Jorge! Levanta já daí!
Abriu os olhos e olhou ao redor, esperando ouvir os brados da torcida, os guardas lhe segurando, mas não estava mais no estádio de beisebol e aquele ambiente parecia vagamente familiar: os quadros na parede da sala, o sofá bordô desbotado, o tapete macio onde estava caído. Sentia uma dor-de-cabeça dos infernos e um gosto de cabo de guarda-chuva na boca. Tentou ver quem falava com ele, mas caiu novamente.
- Não acredito nisso! É a segunda vez esse mês!
(... Verônica era o nome dela, estava começando a lembrar)
- Só porque tu não ganhou aquela promoção, enche a cara, volta pra casa caindo de bêbado, e dorme sentado no controle remoto! Vai logo tomar um banho antes de vomitar no tapete de lã de ovelha!!
E lembrou de tudo.
Vergonha.

George fugindo


O corredor entre os dois prédios era escuro, mas ele não tinha alternativas, precisava continuar fugindo. Não via muito além de dois metros à frente, e ouvia os passos apressados atrás de si. Os gritos ainda ecoavam em seus ouvidos; só de lembrar ele era dominado pelo pavor e embora não parasse de correr, procurava desesperadamente um local para se esconder.

"Não adianta fugir, George. Nós vamos te pegar de qualquer maneira", dizia a voz rouca e gutural. Ele sabia que era verdade, estava cansado e logo não aguentaria mais correr. Então, se não estivesse bem escondido ou seguro em algum lugar - estados que ele desconhecia desde que saíra de casa, há dois dias atrás, - ele seria pego.

Alguns instantes depois, sem parar de correr e examinar freneticamente cada canto pelo qual passava, o corredor por onde ele seguia acabou. Não era um corredor, era um beco. Sem saída. George apalpou a parede à sua frente, procurando alguma reentrância para se apoiar, escalar, subir, escapar; mas não havia nada. Então ele sentiu aquela presença que parecia vir de todos os lados, com seu cheiro adocicado e enjoativo. Era como se o tempo tivesse parado. Não ouvia nada, o ar estava pesado para respirar, sentia a aspereza da parede de tijolos atrás de si, e aguardava, olhando para a imensa escuridão à sua frente.

"Teria sido mais fácil se entregar antes, rapazinho!", ele ouviu então. "Não há como fugir de nós! É engraçado como muitos pensam que conseguem, e o final é sempre igual!"

George caiu de joelhos e fechou os olhos, pedindo ajuda a todos os deuses, torcendo para que fosse salvo de uma maneira ou outra. De repente, aquela sensação de alívio e paz e conforto, preenchendo-o por completo. Ele agradeceu, mas estava enganado. Não fora salvo.

Ele estava perdido.